sábado, 10 de julho de 2010

Campanha eleitoral começa oficialmente: candidatas à presidência têm 49% das intenções de voto, mas menor intenção de escolha entre as mulheres

A segunda-feira, dia 05/07, foi o prazo final para o registro de candidaturas às Eleições 2010. Os nomes, agora, estão sendo analisados pela Justiça Eleitoral.

O Tribunal Superior Eleitoral recebeu o pedido de registro de nove nomes de candidatas/os à Presidência da República. São eles: Marina Silva e Guilherme Leal (PV), Dilma Rousseff e Michel Temer (Coligação Para o Brasil Seguir Mudando – PT, PMDB), Rui Costa Pimenta e Edson Dorta Silva (PCO), Levy Fidelix e Luiz Eduardo Ayres Duarte (PRTB), José Maria de Almeida e Cláudia Alves Durans (PSTU), José Serra e Índio da Costa (Coligação O Brasil Pode Mais – PSDB, DEM), José Maria Eymael e José Paulo da Silva Neto (PSDC), Plínio Arruda Sampaio e Hamilton Moreira de Assis (PSOL) e Ivan Pinheiro e Edmilson Silva Costa (PCB).

De acordo com estes dados, as duas mulheres candidatas representam 22,22% dos registros e têm, juntas, quase 50% das intenções de votos, Dilma Rousseff aparece empatada com José Serra com 39%, e Marina Silva tem 10%, de acordo com a última pesquisa Ibope realizada nacionalmente com 2002 pessoas entre os dias 27 e 30 de junho.

A pesquisa também avaliou as intenções de voto em um possível segundo turno. Dilma Rousseff e José Serra também estão empatados em 43%. Apesar de ser a primeira vez que candidatas alcançam tais patamares, o Ibope e outras pesquisas anteriores mostram que as intenções de votos das mulheres na candidata com maior possibilidade de vencer são menores em relação ao candidato com o qual está empatada.

Na pesquisa em questão, Dilma tem 44% entre os eleitores e 34% entre as eleitoras, enquanto Serra tem 36% entre o eleitorado feminino e 41% entre o eleitorado masculino. As eleitoras indecisas, 9% - índice maior que o de eleitores, 5%, é que fazem a diferença.

Parece intrigante o fato de homens demonstrarem maior preferência em votar em uma mulher e, ao contrário, as mulheres terem menor intenção de votar na candidata, mas este último fato tem despertado maiores debates.

Recentemente, o professor e demógrafo, José Eustáquio Diniz Alves, titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE, chamou a atenção para a mudança do perfil do eleitorado brasileiro, que está envelhecendo e se feminilizando. As eleitoras já superam em 5 milhões os homens aptos a votar, verificando-se um crescimento de aproximadamente 100% da força eleitoral feminina em pouco mais de 20 anos, passando de 37 milhões, em 1988, para 70 milhões de eleitoras em 2010.

Segundo Alves, principalmente as mulheres “balzaquianas”, de 35 anos ou mais, “vão ter um peso cada vez maior no processo eleitoral brasileiro, influindo na decisão do voto e na agenda dos candidatos. Eu tenho absoluta certeza de que as 5 milhões de mulheres podem decidir as eleições presidenciais de 2010. Só não sei em quem elas preferirão votar, e se a decisão delas será a favor de uma mulher ou a favor de um homem”.

No artigo “A Reversão das Expectativas de Gênero nas Eleições 2010: Dilma na Frente entre os Homens e Serra na Frente entre as Mulheres” (2010), José Eustáquio diz que este poder do voto feminino já foi comprovado nas duas últimas eleições presidenciais. Caso o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tivesse tido a mesma votação entre o eleitorado feminino como teve entre o eleitorado masculino, ele teria ganhado no primeiro turno, tanto em 2002 quanto em 2006. “De certa forma, foram as mulheres que jogaram a decisão para o segundo turno, nas duas últimas eleições presidenciais”.

Ao contrário de Lula, “esperava-se uma diferença menor no caso da candidatura Dilma, pois sendo mulher, ela poderia ter uma maior identidade de gênero com o eleitorado feminino. Mas isto não aconteceu, pelo menos por enquanto”. Já Marina, ressalta Alves, ao contrário de Dilma, possui aproximadamente o mesmo percentual de intenções de voto entre o eleitorado de ambos os sexos, inclusive com ligeira vantagem entre as mulheres.

As maiores taxas de indefinição do voto das mulheres e o possível fato de serem mais exigentes na escolha da/do candidata(o) estão entre as possíveis explicações para o menor percentual de intenção de voto feminino, segundo o artigo. “Nesta perspectiva, as mulheres teriam maiores taxas de indefinição porque gostariam de conhecer melhor as candidaturas à presidência. Desta forma, a menor percentagem de votos em Dilma Rousseff seria parte de um comportamento de precaução na escolha do voto, por parte das mulheres, em decorrência da candidata ser novata na política e pouco conhecida do público feminino”.

Em outro artigo, “O Poder do Voto Feminino” (2010), a socióloga Fátima Pacheco Jordão, especialista em pesquisas de opinião, fundadora do Instituto Patrícia Galvão e assessora de pesquisa da “TV Cultura”, também analisa o fato. O texto foi elaborado no contexto do Projeto “Mulheres em Espaços de Poder e Decisão” do Instituto Patrícia Galvão, que tem o objetivo de analisar a percepção das mulheres enquanto eleitoras, com base nos levantamentos sobre intenção de voto realizados por institutos de pesquisa de opinião para as eleições 2010 e eleições de anos anteriores.

“Historicamente tem-se observado que as mulheres aguardam que o quadro de informações das campanhas esteja mais completo e só se interessam mais fortemente pelas eleições quando o horário eleitoral gratuito começa e os debates entre os candidatos são realizados. Mais ainda, as eleitoras ficam na expectativa de algo que afete diretamente a vida da população, como propostas para a saúde, educação, desemprego e segurança, entre outras. Pela experiência das campanhas anteriores, sabe-se que esse processo de tomada de decisão sobre intenção de voto se dá mais consistentemente durante o período de propaganda eleitoral gratuita”.

A socióloga cita o fato do voto feminino ter levado ao segundo turno as eleições de 2006, porque as mulheres mostravam que ainda precisavam de uma segunda rodada de campanha para escolher seu candidato. Em 2006, na véspera do pleito, 19% das mulheres e 12% dos homens ainda estavam indecisos, situação repetida em várias eleições no passado.

Tal situação é a mesma apresentada em 2010, segundo o artigo de Fátima Jordão: mulheres aguardando as próximas etapas do processo e homens mais definidos em suas escolhas. Na pesquisa Ibope realizada no fim de maio, verifica-se na resposta espontânea que 36% estão indecisos, sendo 40% mulheres e 32% homens. Ou seja, o padrão observado se confirma neste estágio da campanha.

Há um mito arraigado, na mídia e no imaginário popular, de que mulher não vota em mulher, já que a grande maioria dos postos de poder é ocupado por homens. Esta ideia não se sustenta, pois em diversos países em que mulheres apresentaram candidaturas fortes, elas obtiveram votação expressiva, de eleitoras e eleitores. Na América Latina há os exemplos recentes e bem sucedidos das presidentes Laura Chinchilla (Costa Rica), Michelle Bachelet (Chile) e Cristina Kirchner (Argentina), afirma a socióloga.

“É importante lembrar que não faltam eleitoras que votem em mulheres, mas sim candidaturas femininas com estrutura partidária, apoio efetivo em termos de recursos, infraestrutura e tempo no horário de propaganda eleitoral. Historicamente, os partidos políticos são espaços de poder masculino”, segundo Fátima Jordão.

Ela também analisa os temas que mais interessam eleitoras e eleitores, podendo interferir em suas intenções de voto. Os homens mostram maior interesse pela esfera do jogo de poder (eleições, preferência partidária e conversa sobre política) e as mulheres estão mais sensíveis a políticas públicas nas áreas de educação e saúde.

“Nesta fase de pré-campanha que se encerra, os temas de maior visibilidade estavam ligados aos bastidores da política – alianças partidárias, composição de chapas, lutas internas entre aliados – que mobilizam mais os eleitores homens. Daqui para frente, começam a entrar nas campanhas os conteúdos de políticas públicas, que ganham mais a atenção das eleitoras. Nesta última fase, as mulheres se engajam mais fortemente, e as candidaturas poderão se beneficiar destas características do processo eleitoral”. A partir de agora, “os eleitores e, sobretudo, as eleitoras, terão olhos mais abertos para as campanhas. As propostas dos candidatos ganham mais foco nos debates, na propaganda e nos discursos. E as duas candidatas e os nove candidatos terão que olhar mais para as mulheres. Assim sempre foi e assim será nas eleições de 2010”.

Acesse os artigos na íntegra na seção de “Estudos e Pesquisas” do site www.maismulheresnopoderbrasil.com.br

Feminização e Envelhecimento do Eleitorado e as Eleições 2010
Autoria: José Eustáquio Diniz Alves
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A Reversão das Expectativas de Gênero nas Eleições 2010: Dilma na Frente entre os Homens e Serra na Frente entre as Mulheres
Autoria: José Eustáquio Diniz Alves
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O Poder do Voto Feminino
Autoria: Fátima Pacheco Jordão
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Sexta, 09/07/2010

domingo, 4 de julho de 2010

A travessia da masculinidade*

O maior avanço contra o machismo está na criação dos filhos

“Ninguém mais se define como machista”, diz Luis Bonino, psiquiatra e psicoterapeuta especializado em homens e relações de gênero. “Mas ainda existe muito machismo encoberto”, acrescenta. “Houve mudanças, mas em aspectos superficiais”, afirma. Ele não gosta de recorrer ao conceito de masculinidade. “É um tipo de essência masculina onde se coloca qualquer coisa. Prefiro falar de um modelo masculino que se adapta às condições históricas em que vivem”, desmitifica.

Nas últimas décadas, a Espanha passou de um machismo em estado bruto a uma igualdade legal na qual sobrevivem práticas do velho modelo. É o que Bonino denomina de micromachismos. “A imagem masculina mudou, sobretudo no aspecto físico. E além disso, os pais se envolvem mais no cuidado dos filhos. Mas isso no ócio e no lúdico. A parte séria e dura fica para a mãe”, afirma.

Bonino reflete sobre o comportamento masculino há anos. Ele é crítico porque é homem e sabe do que está falando. Assim como sabe Mariano Nieto, madrilenho de 52 anos, funcionário do Ministério da Indústria e pai de três filhos, que pertence à organização “Stopmachismo, Homens contra a Desigualdade de Gênero”. Não se trata de um movimento propriamente dito. Apenas um pequeno grupo que se reúne uma vez por mês para combater a desigualdade a partir de seu próprio terreno. “Todos somos machistas. Temos muitos privilégios por sermos homens e achamos que, já que somos parte do problema, também somos parte da solução”, afirma.

“Ser a favor da igualdade não basta”, opina Nieto. “Às vezes a ideia de igualdade é distorcida ou utilizada em benefício próprio. Por exemplo, ao defender a custódia compartilhada dos filhos depois do divórcio, por decisão do juiz, sem mútuo acordo, argumenta-se a favor da igualdade, mas há homens que não cuidavam de seus filhos quando estavam casados e só se lembram deles ao se separarem”, denuncia.

Em algum momento de sua vida, os homens do Stopmachismo se encontraram com uma companheira, com amigas ou colegas de trabalho que os fizeram ver as desigualdades e injustiças que as mulheres ainda sofrem. “A violência de gênero é só a ponta do iceberg da desigualdade. Se os homens não se sentissem com poder para fazê-lo, não chegariam ao maltrato”, assinala. Bonino admite que os espanhóis têm uma consciência cada vez maior da igualdade, mas a maioria ainda vê a mulher como alguém que nutre ao homem. “Ela me enriquece”, dizem. “Não há reciprocidade”, explica.

O que mudou é o social, não a biologia, e isso revelou o ridículo de muitos mitos”, afirma María Ángeles Durán, catedrática e pesquisadora do CSIC. “As mulheres percebem estas transformações como uma mudança para melhor, enquanto alguns homens se ressentem porque perderam terreno e exclusividade. Mas ganharam em liberdade e em reconhecer que a vida pessoal é importante”, prossegue. Mudanças que ainda não terminaram.

Duran observa que a maternidade, ainda que seja uma dedicação permanente, cada vez ocupa menos tempo na vida da mulher como atividade puramente fisiológica. “Levando em conta que há 1,4 filhos por mulher, e cada gravidez dura nove meses, isso representa cerca de 3% da vida da mulher”, afima. A masculinidade também iniciou sua própria travessia. Depois de anos de fomentar uma imagem de poder, “agora são sucessivamente fortes e frágeis, solidários e agressivos... Reconhece-se sua individualidade”, continua Durán. Os filhos são mais uma de suas conquistas. “É uma relação que fica cada vez mais profunda. Eles conhecem e tratam seus filhos como nunca fizeram. Os homens se engrandeceram. A hombridade não era só a agressividade, mas também o afeto e a solidariedade”, conclui.

Houve uma época em que o homem era, antes de tudo isso, o seu gênero. A masculinidade, e nem sempre a individualidade, os definia. Seguindo sempre o mesmo molde, presos ou felizes dentro de seu papel dominante, destinados a fazer o nó da gravata em algum momento de sua vida. Integridade, valor, hombridade. Houve um tempo em que essas eram palavras intercambiáveis. E continuam sendo em algumas de suas acepções. Ainda que também se associassem com a força, a agressividade, o exercício da guerra. Um conjunto de temas que há tempos caíram em desuso. “O homem muda induzido pela mulher: o que ele faz é se adaptar”, afirma a socióloga Myriam Fernández Nevado. “A chave agora é a participação: há uma inter-relação pessoal e social mais participativa entre homens e mulheres. Não é tanto uma troca de papel ou de modelo, quanto de funções.”

O que resta então da hombridade? “No fundo resta muita coisa. Como conceito ficou ultrapassado. Mas os maus-tratos estão muito relacionados com a sobrevivência desses supostos valores”, assegura Mercedes Ferández-Martorell, professora de Antropologia Social e Cultural da Universidade de Barcelona. “Ainda que muitos homens estejam modificando suas condutas tradicionais, os antigos esquemas se reproduzem na transmissão de valores a seus filhos. Dentro das famílias não se percebe tanta evolução. É difícil encontrar pais e mães que vivam numa total cumplicidade, que sejam responsáveis por tudo na casa e compartilhem tudo”, continua. “Entre os jovens, as ideias são mais igualitárias, mas apenas as ideias...”, acrescenta.

“A hombridade foi se redefinindo porque não é possível que o feminino mude e o que o masculino não o faça. No passado o homem era o único provedor. Ele era obrigado a aparentar que podia com tudo. Agora perdeu seu caráter dominante por razões demográfica, de expectativa de vida. Já não pode ser assim”, argumenta Durán. “À hombridade eram vinculadas qualidades consideradas masculinas, como o bom humor, a serenidade e a inteligência, algo que já não se sustenta desde que as mulheres chegaram à universidade e ao mundo profissional. A educação mudou as coisas. Muitos desses valores eram considerados masculinos porque as mulheres não tinham chance de exercitá-los. Quando tiveram a possibilidade de fazê-lo, os incorporaram”, explica.

“As mudanças de modelo estão acontecendo principalmente nas classes médias e altas. Entre os adolescentes há muita diversidade. Depende dos valores educativos que seguem. Ainda se conservam valores populares ligados à masculinidade”, recorda. “Há menos machismo em seu conjunto, mas existe uma certa polaridade e o resquício é recalcitrante. A igualdade tem um preço alto para muitos homens: ou estamos por cima, ou estamos por baixo, parecem dizer”, afirma Bonino.

“Naturalmente, há resistências. Dentro da sociedade há núcleos ancorados no passado, com uma espécie de liturgia própria e alguns padrões de conduta mais rígidos, e então a mudança é mais custosa”, afirma Fernández Nevado. “Porque não muda só o comportamento, mas a mentalidade. Mas mudar não é errar, e sim buscar novas atitudes”, acrescenta.

Para alguns, também é difícil abandonar o machismo. Ser homem ainda têm muitas vantagens. “Por exemplo, os homens têm mais tempo livre. E entretanto, alguns se mostram irritados com a ascensão das mulheres. E culpam o feminismo por seus males”, explica Bonino. “Entretanto, os homens chiam quando têm seus direitos ignorados ou percebem que são vítimas, eles não ficam de braços cruzados, e surgem grupos anti-igualitários”. No fim das contas, “há homens que melhoram. Mas outros ficam pior”, sintetiza.

Brad Pitt, Patrick Dempsey, David Bisbal ou Antonio Bandeiras, tão diferentes entre si, representam o novo ícone masculino. Uns sempre com seus filhos nos momentos de ócio, outros sem ter medo de se emocionar em público ou de apoiar sua companheira nos maus momentos. Para muitas mulheres, o homem marcadamente varonil só interessa como imagem (e como identidade sexual), mas sem caráter de dominação. Nenhuma exibição de testosterona seduz a essas alturas. “Entretanto, nem todos os que são a favor da igualdade têm os mesmos motivos: uns querem corrigir a injustiça. Outros acham que a igualdade entre homens e mulheres os beneficia”, conclui Bonino.

Ainda que minoritários, há grupos de homens contra a desigualdade no País Basco, Madri, Andaluzia e outros locais. Com frequência realizam oficinas para analisar sua obsessão pelo poder. “Há pouco tempo organizamos umas oficinas para movimentos sociais e vimos que até entre os “okupas” (movimento de ocupação irregular de imóveis urbanos) sobrevive o machismo”, lembra Nieto. “Guardando as devidas proporções, alguns de nós se reúnem pelo mesmo motivo que os alcoólicos anônimos: para lembrar que continuamos sendo machistas, embora tentemos deixar de sê-lo”, argumenta. Com razão sua mãe costuma dizer à sua nora, a mulher de Nieto: “Mas você percebe a maravilha de homem que tem? Não há muitos assim...”

*Inmaculada de La Fuente / El País

'É impossível descrever a dor'

'É impossível descrever a dor', diz modelo sobre circuncisão feminina
Somali Waris Dirie escreveu livro que inspirou filme em cartaz esta semana. Em todo o mundo, até 140 milhões de mulheres sofrem com mutilação.

As histórias são parecidas: sem aviso, as meninas são levadas pelas mães a um local ermo, onde encontram uma espécie de parteira que as espera com uma navalha. Sem qualquer anestesia ou assepsia, a mulher abre as pernas das garotas - muitas vezes, crianças de menos de dez anos - e corta a região genital, num procedimento que varia da retirada do clitóris ao corte dos grandes lábios e à infibulação (fechamento parcial do orifício genital).

Com Waris Dirie não foi diferente. "Desmaiei muitas vezes. É impossível descrever a dor que se sente", disse em entrevista ao G1 a hoje modelo e ativista contra a mutilação genital feminina. Dirie nasceu num vilarejo da Somália e foi circuncisada aos cinco anos.

Após conseguir fugir de um casamento arranjado por seu pai aos 13 anos, ela foi parar em Londres, onde chamou a atenção de um fotógrafo. Dirie se tornou modelo internacional e uma ferrenha ativista contra a circuncisão feminina. Sua história, contada no livro "Flor do deserto", virou filme com o mesmo nome - em cartaz em São Paulo.

"É uma vergonha que uma tortura bárbara, cruel e inútil continue a existir no século XXI". Dirie diz que sempre sentiu que aquilo não estava certo e quando se tornou uma 'supermodelo' pode começar a luta contra a prática. Aos 45 anos, ela é fundadora de uma organização que leva seu nome e embaixadora da ONU contra a mutilação feminina.

Ela mora com a família em uma casa alugada na Etiópia e disse que está tentando convencer a cunhada a não circuncisar as filhas. "Estou confrontando a mutilação na minha própria família. Meu irmão tem seis meninas, todas menores de idade e que vivem no deserto. Minha cunhada quer mutilá-las. Por causa disso eu estou tentando trazer as meninas para um lugar seguro. Isso tira meu sono todas as noites."

Ocorrências
Estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que entre 100 e 140 milhões de meninas e mulheres vivem hoje sob consequências da mutilação - a maioria na África. A organização tem uma campanha contra a prática, que considera prejudicial à saúde da mulher e uma violação dos direitos humanos.

A mutilação ocorre em várias partes do mundo, mas tem registro mais frequente no leste, no oeste e no nordeste da África e em comunidades de imigrantes nos EUA e Europa. Em sete países africanos - entre eles Somália, Etiópia e Mali - a prevalência da mutilação é em 85% das mulheres.

Um estudo da ONG Humans Rights Watch de junho deste ano (clique para ler a pesquisa, em inglês) mostra que, no Curdistão iraquiano, 40,7% das meninas e mulheres de 11 a 24 anos passaram por mutilação.

Uma declaração da OMS de 2008 contra a prática diz que a mutilação "é uma manifestação de desigualdade de gênero, [...] uma forma de controle social sobre a mulher" e que é geralmente apoiada tanto por homens quanto por mulheres. Segundo o texto, algumas comunidades entendem a circuncisão como artifício para reprimir o desejo sexual, garantir a fidelidade conjugal e manter as jovens "limpas" e "belas".

"Não tem nada a ver com religião. Todas as meninas que são vítimas de FGM [mutilação genital feminina, na sigla em inglês] também são vítimas do casamento forçado. A maioria é vendida quando criança a homens mais velhos. Eles não pagariam por uma noiva que não é mutilada. É uma vergonha para nossas comunidades, para os países que permitem a prática. Os homens temem a sexualidade feminina, essa é a verdade", explica Dirie.

E ela não é a única a falar abertamente sobre o assunto. A médica egípcia Nawal El Saadawi, também circuncisada, chegou a ser presa em seu Egito natal após falar do tema e fazer campanha contra a prática. Sua história foi contada no livro "A daughter of Isis" ('Filha de Isis'), e em outros em que aborda a questão feminina nos países do Oriente Médio.

Danos à saúde
A OMS divide a prática em quatro tipos: o tipo 1 é a remoção total ou parcial do clitóris; o tipo 2 é a retirada do clitóris e dos pequenos lábios; o terceiro tipo envolve o estreitamento do orifício vaginal pela criação de uma membrana selante, corte ou aposição dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios (a chamada infibulação); o tipo 4 é qualquer outra forma de intervenção por razão não médica. Os primeiros dois tipos correspondem a 90% das ocorrências de mutilação, segundo a OMS.

De acordo com a ginecologista da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) Carolina Ambrogini, a circuncisão traz riscos imediatos, como hemorragia e infecção. "Não temos registros dessa prática no Brasil. A vagina é uma região muito vascularizada, e há perigo de sangramento intenso, infecção e até de morte. As consequências a longo prazo são um possível trauma psicológico e a perda do prazer na relação sexual."

Os casos de infibulação também trazem riscos durante o parto: segundo um estudo da OMS, a mortalidade de bebês é 55% maior em mulheres que sofreram procedimentos para redução do orifício vaginal.

Polêmica nos EUA
No começo do mês de junho, a Academia Americana de Pediatria (AAP) dos EUA emitiu uma declaração indicando que talvez fosse melhor que os médicos fossem autorizados a realizar uma forma leve de circuncisão feminina nas clínicas americanas do que deixar as famílias enviarem as filhas para os países de origem que realizam o procedimento de maneira rudimentar e sem segurança. O texto gerou polêmica e muitas críticas de organizações de direitos humanos - a mutilação genital feminina é proibida por lei nos EUA - e foi retirado pela AAP.

Em entrevista ao G1 por e-mail, a presidente da AAP, Judith Palfrey, disse que a AAP "é contra todas as formas de mutilação e nunca recomendou a prática. Uma confusão foi gerada a partir de uma discussão acadêmica". A relatora da declaração, Dena Davis, disse que médicos acreditam que algumas meninas estão sendo levadas a países africanos para a realização da prática, embora não haja dados sobre isso. "O objetivo do texto era educar os médicos para tentar orientar as famílias que pedem pelo procedimento."

A última declaração da OMS contra a prática afirma que o trabalho junto às comunidades está tentando reverter o costume e tem obtido sucesso em algumas regiões, apesar da lenta taxa de redução.

"A prática continua porque o mundo não toma nenhuma atitude séria contra isso, nem a ONU nem nenhum outro país do mundo. Encontrei muitos políticos. E ouvi muito blábláblá. Mas não vejo nenhuma atitude séria para acabar com esse crime", protesta Dirie.

Fonte: Universidade Livre Feminista
Sáb, 03 de Julho de 2010 / Giovana Sanchez - Do G1, em São Paulo