sábado, 30 de janeiro de 2010

Mulheres já são 30% na magistratura brasileira

Quatro décadas após a nomeação da primeira juíza federal do Brasil, Maria Rita Soares de Andrade, em 1967, o Poder Judiciário brasileiro tem um perfil cada vez mais feminino. Advogada de vários perseguidos da II Guerra Mundial, Maria Rita esteve na vanguarda forense, sendo a primeira mulher membro do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, integrando, inclusive, o Conselho da Guanabara e, por indicação deste, foi a primeira mulher no Conselho Federal da Ordem dos Advogados.

Mas, dez anos antes, em 1954, outra mulher, Thereza Grisólia Tang, tornava-se a primeira juíza do Brasil, ingressando na magistratura de Santa Catarina e sendo por quase duas décadas a única mulher no Judiciário estadual. Thereza Grisólia também ocupou a presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina em 1989.

Apesar de ainda não alcançarem a paridade na magistratura (30%) e estarem mais longe disso nos Tribunais Superiores (15,56%), a tendência é pela equidade, isso porque é crescente o número e o percentual de mulheres advogadas, que já representam quase 45% da categoria. E a pergunta que podemos fazer nesse momento de mudança é: o Judiciário muda com a maior presença feminina?

Segundo Valéria Pandjiarjian, advogada, membro do CLADEM-Brasil, seção nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher e do IPÊ-Instituto para Promoção da Equidade, ainda persistem preconceitos de sexo, classe e raça/etnia que influenciam as decisões do Poder Judiciário, muitas vezes em prejuízo às mulheres. Conceitos morais como "mulher honesta", "inocência da vítima" e "boa mãe" são usados para definir questões como separação e guarda de filhos, violência conjugal e crimes sexuais.

Tais discriminações, preconceitos e reprodução de estereótipos, de acordo com a advogada, devem-se, sobretudo, “aos padrões de cultura presentes na sociedade e refletidos - em maior ou menor grau - nas práticas jurídicas institucionais”. Mesmo a efetivação dos direitos das mulheres brasileiras estando, em grande parte, condicionada à incorporação pelo Poder Judiciário dos valores igualitários e democratizantes da Constituição de 1988, “o conteúdo de decisões judiciais, vale frisar, ora contemplam, ora não contemplam devidamente os princípios de igualdade, não-discriminação e não-violência em relação à mulher.”

Para a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Maria Berenice Dias, não há dúvidas da feminização da Justiça. Mas a recente presença das mulheres no poder ainda faz com que normalmente elas não tenham a mesma credibilidade de seus pares. “São alvo de referências que dizem mais com seus atributos pessoais do que com seu desempenho profissional. Como toda novidade, despertam mais a atenção, correspondendo sua imagem a verdadeiros totens. Por isso, acabam recebendo rótulos: como mais severas ou mais condescendentes que os juízes, ou ainda são apontadas como adequadas ou não para jurisdicionar determinadas varas. Essa estratificação dicotômica decorre de percepções frequentemente inconscientes e que registram um conteúdo discriminatório, pois atitudes por vezes não relevantes ficam mais visíveis e são potencializadas de forma generalizante”.

A desembargadora afirma que apenas uma maior compreensão da feminilidade permitirá identificar grande parte dos conflitos domésticos e atender às reivindicações femininas. “Essa tarefa necessita ser assumida pela ala das mulheres, tanto juristas, como magistradas, promotoras e advogadas”. Ela cita Denise Bruno, ao discorrer sobre Mulheres e Direito. Para esta última, as mulheres juízas, apesar de terem consciência da necessidade de mudanças, não rompem com os códigos e padrões legais vigentes por se sentirem incapazes de confrontar o padrão patriarcal, por não terem consciência do mesmo, ou por não estarem dispostas a arcarem com as consequências de romper com as expectativas patriarcais sobre as mulheres.

Na Argentina, como noticiou a agência de notícias IPS Mídia, a discussão em relação a uma Justiça com perspectiva de gênero está mais na garantia desse enfoque nas sentenças, seja por juízas ou juízes, do que no desequilíbrio de juízas e juízes no Poder Judiciário.

“A quantidade de mulheres existente hoje no Poder Judiciário não nos satisfaz, mas se o que se busca são sentenças com perspectiva de gênero, então, o que importa é a capacitação de juízes e juízas”, disse à IPS Natalia Gherardi, diretora-executiva da Organização Não-Governamental Equipe Latino-Americana de Justiça e Gênero (ELA).

De acordo com o “Informe sobre Gênero e Direitos Humanos 2005-2008” da ELA, lançado recentemente e que reivindica o direito de participação equitativa das mulheres em todos os poderes, “os números nada dizem sobre o verdadeiro grau de inclusão na vida pública nem do nível de influência e impacto que conseguem exercer a partir de seus respectivos postos”. Natalia Gherardi disse ao IPS que se o objetivo é incidir na maneira de administrar justiça, é preciso aportar elementos de juízo com viés de gênero a juízes e juízas, “para promover a defesa dos direitos das mulheres não tenho de buscar mulheres como aliadas, mas juízes e juízas capacitadas”.

Segundo a agência de notícias, a Comissão de Gênero da Defensoria Geral da Nação realiza um trabalho com esse objetivo. Todos os magistrados, defensores públicos, funcionários e empregados dessa instituição encarregada de proteger os interesses das pessoas devem participar de um curso de capacitação na perspectiva de gênero, realizado pela comissão mensalmente.

A esse respeito, o estudo da ELA diz que a questão da representação feminina não deve limitar-se a considerar a maior inclusão das mulheres como uma exigência básica de justiça ou democracia, mas que também devem ser atribuídas certas responsabilidades nos cargos públicos.

Referências:
PANDJIARJIAN, Valéria. Os Estereótipos de Gênero nos Processos Judiciais e a Violência contra a Mulher na Legislação. Disponível em:http://www.maismulheresnopoderbrasil.com.br/pdf/Judiciario/Os_Estereotipos_deGenero_nos_Processos_Judiciais_e_a_violencia_contra_a_mulher_na_Legislacao.pdf
DIAS, Maria Berenice. A Mulher e o Poder Judiciário. Disponível em: http://www.maismulheresnopoderbrasil.com.br/pdf/Judiciario/A_mulher_e_o_Poder_Judiciario.pdf
Reprodução de conteúdo autorizada desde que citada a fonte: Site www.maismulheresnopoderbrasil.com.br

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Mulheres podem ter papel decisivo nas negociações sobre o clima

Após as negociações frustradas da Conferência das Partes da Convenção de Mudanças Climáticas das Nações Unidas (COP-15), que aconteceu em Copenhague, na Dinamarca, em dezembro, as mulheres podem assumir um papel decisivo para reverter um visível caos climático. As discussões não avançaram como era esperado devido a divergências entre o índice de redução de gases que causam o efeito estufa por parte de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Teme-se que a diminuição de poluentes afete o desenvolvimento econômico e traga consequências indesejáveis, como recessão e desemprego.

Entretanto, como afirmou recentemente o “Relatório sobre a Situação da População Mundial 2009 – Enfrentando um Mundo em Transição: Mulheres, População e Clima”, elaborado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), “a mudança do clima é mais do que uma questão de eficiência energética ou de emissões industriais de carbono; trata-se, também, de uma questão de dinâmica populacional, pobreza e equidade entre os gêneros. A influência da mudança do clima sobre as pessoas também é complexa, motivando migração, destruindo meios de subsistência, transtornando economias, comprometendo o desenvolvimento e exacerbando desigualdades entre os sexos”.

As mulheres, principalmente aquelas que residem em países pobres, serão afetadas de um modo diferente em comparação aos homens, segundo o relatório. “Elas estão entre os mais vulneráveis à mudança do clima, em parte porque, em muitos países, elas constituem a maioria da força de trabalho agrícola e, em parte, porque tendem a ter acesso a menos oportunidades de geração de renda. As mulheres administram domicílios e cuidam dos membros de suas famílias, o que muitas vezes limita sua mobilidade e aumenta sua vulnerabilidade a desastres naturais relacionados ao clima. A seca e a pluviosidade errática obrigam as mulheres a trabalhar mais arduamente para obter alimentos, água e energia para suas casas. As meninas deixam de frequentar a escola para ajudar suas mães nessas tarefas. Esse ciclo de privação, pobreza e desigualdade compromete o capital social necessário para lidar efetivamente com a mudança do clima”.

O texto conclui que a influência do gênero na resiliência – isto é, na capacidade de recuperação de impactos da mudança do clima – é uma consideração importante para o desenvolvimento de intervenções destinadas à adaptação, bem como que as diferenças de gênero relacionadas à adaptação refletem os padrões mais amplos de desigualdade estrutural entre os gêneros. Apesar de mulheres, jovens, idosos, povos indígenas e outras minorias serem os mais vulneráveis, são os que recebem menos apoio e muitas vezes são excluídos de participação nas respostas coletivas das sociedades à adversidade.

As mulheres rurais são um exemplo citado pela UNFPA. Como estão mais próximas dos recursos naturais em proporção direta a sua pobreza, costumam ter mais consciência de que as ações de sua comunidade ou mesmo as suas próprias podem causar degradação ambiental local. Portanto, experiências de mulheres camponesas e indígenas podem ser usadas como boa prática não apenas em suas comunidades, mas a nível global, estimulando trabalhos sustentáveis em inúmeras outras localidades.

E o mundo já testemunhou o poder feminino em adotar ações que contribuem para a redução dos níveis de dióxido de carbono na atmosfera. Wangari Maathai recebeu o Prêmio Nobel da Paz por toda uma vida de ativismo ambiental que começou mediante a mobilização de mulheres para plantar milhares de árvores em solos desmatados e degradados do Quênia. Na Índia, o movimento Chipko obteve a participação de mulheres já na década de 1970, para proteger as florestas e seus próprios direitos à silvicultura ao se darem as mãos e os braços em torno às árvores, dissuadindo madeireiros incumbidos de derrubá-las. O movimento levou a grandes reformas das leis de silvicultura da Índia, resultando em uma maior cobertura florestal hoje (e, portanto, mais carbono nas árvores e menos na atmosfera).

Estudo sobre desmatamento, atividade desempenhada majoritariamente por homens e responsável por uma proporção substancial de todas as emissões de dióxido de carbono, constatou que uma alta presença de organizações não-governamentais de mulheres em países de baixa renda pode ajudar a proteger as florestas da destruição. ONGs também têm documentado modelos inspiradores de mulheres e homens atuando contra os estereótipos. “Pais que ficam viúvos após desastres às vezes passam a cuidar ativamente de seus filhos e até se mudam de casa para estar próximos da escola deles. Alguns programas de compensação oferecem recompensas financeiras aos homens por se absterem do consumo de bebidas alcoólicas durante a recuperação pós-desastre, atenuando com sucesso a pobreza secundária das mulheres e sua vulnerabilidade a maus tratos conjugais”.

Portanto, uma mudança de política para “uma capacitação mais proativa” faz-se necessária a fim de reduzir a desigualdade entre os sexos. Há uma crescente influência da sociedade civil global, permitindo que as mulheres desempenhem um papel muito mais amplo na tomada de decisões no âmbito das Nações Unidas, mediante a criação de canais alternativos às delegações nacionais dominadas por homens. Dessa forma, por meio desses novos canais, as mulheres ativistas têm aplicado uma lente de gênero a algumas das questões mais urgentes de nossos tempos, trazendo sua perspectiva e agregando suas experiências de vida de modo a influenciar a maneira como essas questões são entendidas e tratadas.

Atualmente, as mulheres raramente constituem mais do que 15% dos autores dos relatórios de avaliação climática e “as vozes das mulheres precisarão ser fortes e ouvidas, vindas de conselhos tribais, passando pelos ministérios de energia dos países até os corredores das Nações Unidas”, afirma o relatório da UNFPA.

“A maior participação das mulheres na questão do clima - seja como cientistas, seja como ativistas comunitárias ou negociadoras em conferências das partes do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática - só pode favorecer a resposta da sociedade à mudança do clima ao agregar-se à diversidade de perspectivas sobre como abordar o desafio que ela representa. Essa participação, por sua vez, pode ser fomentada mediante a melhoria da igualdade legal e social das mulheres com relação aos homens e seu igual gozo de direitos humanos, inclusive o direito à saúde sexual e reprodutiva e a determinação de ter filhos e quando os ter”, recomenda a UNFPA. “Dar autonomia às mulheres, garantindo-lhes acesso aos recursos e às informações de que precisam para tomarem decisões apropriadas sobre o manejo de recursos é, portanto, fundamental para o desenvolvimento sustentável”.

O “Relatório sobre a Situação da População Mundial 2009 – Enfrentando um Mundo em Transição: Mulheres, População e Clima” e o “Caderno de População – As Mulheres e o Clima” estão disponíveis na seção de “Estudos e Pesquisas” do site www.maismulheresnopoderbrasil.com.br

O fato é que a sociedade já discute o PNDH-3

Segundo jurista, mérito do plano foi alargar debate sobre direitos humanos no País
Flávia Piovesan

O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) tem como mérito maior lançar a pauta de direitos humanos no debate público, como política de Estado, de ambiciosa vocação transversal. São 521 ações programáticas, alocadas em seis eixos orientadores: interação democrática entre Estado e sociedade civil; desenvolvimento e direitos humanos; universalizar os direitos humanos em um contexto de desigualdades; segurança pública, acesso à Justiça e combate à violência; educação e cultura em direitos humanos; e direito à memória e à verdade. O PNDH-3 é fruto da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, de dezembro de 2008; um processo aberto e plural, contando com a participação da sociedade civil e de atores governamentais, no exercício democrático marcado por "tensões, divergências e disputas", como reconhecido no prefácio ao PNDH-3.

Os diversos ministérios foram convidados a participar desse trabalho, contando o PNDH-3 com suas assinaturas, tendo em vista a "transversalidade e a interministerialidade de suas diretrizes". Espelha a própria história dos direitos humanos, que, como lembra Norberto Bobbio, não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Direito ao meio ambiente, ao desenvolvimento sustentável, à verdade, à livre orientação sexual, aos avanços tecnológicos, direitos dos idosos, entre outros, são temas da agenda contemporânea de direitos humanos. O programa reflete as complexidades da realidade brasileira, a conjugar uma pauta pré-republicana (por exemplo, o combate e prevenção ao trabalho escravo) com desafios da pós-modernidade (como o fomento às tecnologias socialmente inclusivas e ambientalmente sustentáveis). O primeiro PNDH, lançado por FHC, em 1996, contemplava metas em direitos civis e políticos. Em 2002, são incluídos os direitos econômicos, sociais e culturais. O PNDH-3 atualiza e amplia o programa anterior. O novo programa é reflexo da abrangência que os direitos humanos assumem desde a Declaração Universal. Como noticiado, a mais polêmica é a criação da Comissão Nacional da Verdade para examinar violações de direitos humanos praticadas no período da repressão política de 1964 a 1985. A jurisprudência internacional reconhece que leis de anistia violam obrigações no campo dos direitos humanos. A Corte Interamericana considerou que essas leis perpetuam a impunidade, impedem o acesso à Justiça de vítimas e familiares e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, consistindo numa direta afronta à Convenção Americana. Destaca-se o caso Almonacid Arellano versus Chile, em que a mesma corte, em 2006, decidiu pela invalidade do decreto-lei 2191/78 - que previa anistia aos crimes perpetrados de 1973 a 1978 na era Pinochet - por negar justiça às vítimas, bem como contrariar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa-humanidade.

Quanto ao aborto, o PNDH-3 endossa a aprovação de projeto de lei que descriminaliza o aborto, em respeito à autonomia das mulheres. A ordem internacional recomenda aos Estados que assumam o aborto ilegal como uma questão prioritária e sejam revisadas as legislações punitivas em relação ao aborto, considerado um grave problema de saúde pública. A respeito das uniões homoafetivas, o PNDH-3 apoia a união civil entre pessoas do mesmo sexo, assegurando os direitos dela decorrentes, como a adoção. Em 2008, a Corte Europeia de Direitos Humanos ineditamente condenou a França por afronta à cláusula da igualdade e proibição da discriminação, ao ter impedido uma professora francesa, que vive com sua companheira desde 1990, de realizar uma adoção. No dia 8 de janeiro, Portugal une-se à Bélgica, Holanda, Espanha, Noruega e Suécia, países que permitem o matrimônio entre homossexuais.

Sobre a liberdade religiosa, o PNDH-3 propõe a construção de mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos. Uma decisão da Corte Europeia de 2009 condenou a Itália a retirar crucifixos de escolas públicas, em nome do direito à liberdade religiosa. No Estado laico, todas as religiões merecem igual consideração e respeito, não podendo se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião. Se na época dos regimes ditatoriais a agenda dos direitos humanos era contra o Estado, com a democratização os direitos humanos passam a ser também uma agenda do Estado - que combina a feição híbrida de agente promotor de direitos humanos e, por vezes, agente violador de direitos.O PNDH-3 desde já presta especial contribuição ao ampliar e intensificar o debate público sobre direitos humanos, acenando com a ideia de que não há democracia, tampouco Estado de Direito, sem que os direitos humanos sejam respeitados.

___________________Professora de Direitos Humanos; procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
O ESTADO DE SÃO PAULO – 17/01/2010

domingo, 17 de janeiro de 2010

ABORTO*

Debora Diniz**
Professora da UnB e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis)

A descriminalização do aborto é questão na agenda política da Secretaria de Direitos Humanos no Brasil. A recomendação do recém-lançado 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) é de que o Legislativo descriminalize o aborto modificando o Código Penal. Há muito tempo o Ministério da Saúde e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres defendem a tese de que a descriminalização do aborto é uma necessidade de saúde e de proteção aos direitos das mulheres. Sendo assim, o que há de novo nesse reconhecimento de que a descriminalização do aborto deve ser uma ação prioritária de direitos humanos pelo Estado brasileiro? Certamente a recomendação do PNDH não é um simples ato retórico, em particular pelos riscos políticos que o tema provoca em um ano de eleições.

Os direitos humanos fazem parte de um acordo entre as nações. Como resultado de um ato racional de escolha, optamos por viver em sociedades que os respeitam em detrimento dos regimes totalitários ou ditatoriais. Ações básicas de nossa vida social, como o direito de ir e vir e a liberdade de expressão ou de pensamento, traduzidos em atos coloquiais, como ter o direito de frequentar uma comunidade religiosa, estão sob a proteção da cultura dos direitos humanos.

Uma nação que assume o marco dos direitos humanos como ponto de partida para o funcionamento de suas instituições básicas é aquela que reconhece nas liberdades fundamentais, em particular no direito à vida, na liberdade e na dignidade, os princípios éticos para o gerenciamento de seus atos e políticas.

Descriminalizar o aborto é uma ação de direitos humanos exatamente por proteger as liberdades fundamentais das mulheres: direito à vida, em razão dos riscos envolvidos no aborto realizado em condições inseguras; direito à liberdade por reconhecer o caráter soberano das escolhas individuais em matéria de ética privada; direito à dignidade, pois somente uma vida com liberdade e segurança pode ser qualificada como digna. No entanto, se afirmar positivamente a descriminalização do aborto como uma medida de direitos humanos pode ainda soar estranho para aqueles que o entendem como uma ameaça religiosa ou como uma violação de direitos potenciais do feto, talvez seja mais simples demonstrar o quanto a criminalização do aborto é um ato de tratamento cruel e inumano do Estado contra as mulheres.

Um Estado que se sustenta na cultura dos direitos humanos não age cruelmente contra metade de sua população, caso se considere que o aborto é um tema exclusivamente das mulheres, o que seria tão absurdo quanto sustentar que o racismo diz respeito apenas às minorias raciais. A crueldade está em punir as mulheres pelos corpos que habitam, em proibi-las de ter acesso às medidas sanitárias que protegem suas necessidades de saúde, em ignorar suas preferências individuais sobre como conduzir suas vidas. Um ato é cruel quando impõe sofrimentos físicos ou mentais, com o objetivo de castigar por algum ato cometido. No caso da criminalização do aborto, o castigo é ao sexo, expresso no corpo da mulher pela gravidez não planejada, mas que deve ser alvo permanente do controle por valores patriarcais.

Mas é possível analisar ainda mais delicadamente o tema da criminalização do aborto como uma violação de um dos direitos mais básicos da vida digna – o direito a estar livre de tortura. O Supremo Tribunal Federal irá decidir em breve se as mulheres grávidas de fetos com anencefalia podem ou não antecipar o parto. A anencefalia é uma má-formação fetal incompatível com a sobrevida do feto fora do útero. A ação de anencefalia foi proposta em 2004 e é um pedido de proteção das mulheres ao Estado: elas querem o direito de abreviar o luto pelo feto que não sobreviverá ao parto. No entanto, as mulheres ainda são obrigadas a se manter grávidas, mesmo sabendo que em breve enterrarão o filho. Não tenho dúvidas de que o dever da gestação nestes casos deve ser classificado como um ato de tortura do Estado contra as mulheres.

É nesse marco político que deve ser entendida a recomendação do PNDH. A descriminalização do aborto não é um ato de afronta religiosa, mas de proteção às liberdades individuais. É um reconhecimento público de que o Estado brasileiro não age cruelmente face às necessidades de saúde das mulheres. É uma afirmação de que vida digna para as mulheres em idade reprodutiva significa conceder-lhes a soberania do direito de escolha. Não deve haver punição nem castigo para as mulheres que abortam. Assim como milhões de outras mulheres, as mulheres brasileiras querem viver em um país que reconhece a descriminalização do aborto como uma medida de proteção aos direitos fundamentais.
_______________________________________________________________________________________________________ *Correio Braziliense - 09/01/2010
**A autora do artigo é professora da Universidade de Brasília, vencedora do 10º Prêmio de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo (USP), na categoria individual, pela sua contribuição para a difusão, a disseminação e a divulgação dos Direitos Humanos no Brasil. A seriedade do artigo e o ângulo em que a questão é posta nos impulsiona a continuar nesta luta.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Entrevista com Rosiska Darcy de Oliveira*

Para Rosiska, é preciso reconhecer o valor social e econômico da vida privada para se reestruturar o mercado de trabalho e diminuir a carga de trabalho das mulheres

MMPB - Você viveu no exílio e fez parte de um grupo de intelectuais que denunciou torturas durante a Ditadura brasileira. Pode falar um pouco sobre o que vivenciou nesse período?
Rosiska
- É o melhor lugar para você formar sua identidade. O exílio é de onde você olha para tudo aquilo que parecia normal com olhar estrangeiro. Então, quando eu saí do país, o Brasil era a única coisa que existia no mundo para mim. E quando cheguei em outro país, comecei a olhar o Brasil de um outro ponto de vista, e isso é muito formador.

A outra experiência importantíssima foi ter encontrado o movimento de mulheres. A escritora Virginia Woolf diz que era cidadã do país das mulheres, e eu, que não tinha passaporte, que era refugiada política, encontrei uma espécie de cidadania nesse país das mulheres. Naquele momento começava um movimento de mulheres muito efervescente na Europa e nos Estados Unidos, no começo dos anos 70, e foi aí que eu encontrei uma cidadania, um pertencimento, porque o drama do exílio é você não ter pertencimento. O seu presente fica muito comprometido porque você está ali por causa do seu passado, e o seu futuro depende do que vai acontecer no seu país. Você não sabe se você volta ou não. Então o presente corre um sério risco de ficar comprometido ou pelo saudosismo ou pela desistência, pela depressão, o que aconteceu com muitos refugiados. Fui salva, provavelmente, por esse sentimento de pertencimento que eu tive pela causa das mulheres, que era a minha própria causa, e pelos laços afetivos que se criaram nessa luta e que foram também uma outra saída.

MMPB - Quais as semelhanças e diferenças entre as demandas da luta feminista nesta época no Brasil e no exterior? O que a levou a lutar pela causa das mulheres?
Rosiska
- O movimento, fora, naquela época, tinha amadurecido mais a ideia de que a causa das mulheres era uma causa em si, e que essa causa em si era uma causa política, uma causa importante que mexia com a transformação da sociedade com profundidade. Naquele momento, no Brasil, até pelo peso da Ditadura, havia ainda uma tendência a considerar que a causa das mulheres seria uma questão secundária. A sociedade devia mudar, era preciso derrubar a Ditadura, acabar com as injustiças de classe, enfim, assuntos que eu estava também de acordo, evidentemente, porque defendia uma mudança da sociedade brasileira. Não deixei de reconhecer que ali havia uma questão política central, não para um mundo europeu, mas também para o Brasil. E aí a minha experiência pessoal pesou muito, porque antes de sair do Brasil eu já tinha uma consciência muito forte da opressão das mulheres e uma posição feminista pessoal contra isso. Mas eu não tinha encontrado ainda um movimento e outras pessoas que, como eu, tratassem esta temática como uma questão política. Então o encontro disso foi importante, porque mesmo depois, quando eu voltei para o Brasil, ainda estava se discutindo se a questão das mulheres era prioritária ou não, enfim, uma série de bobagens e que hoje eu acho que ninguém mais está discutindo, pelo menos espero.

MMPB - As mulheres alcançaram uma série de direitos e liberdades nas últimas décadas. Elas estão realizadas com estas conquistas?
Rosiska
- Acho que as mulheres estão enfrentando um imenso problema e eu tratei disso no meu livro “Reengenharia do Tempo”. Elas entraram no mundo dos homens. A minha geração participou de uma verdadeira revolução, a revolução mais importante do século XX, que mudou a sociedade mundial e a sociedade brasileira. Houve uma imensa migração das mulheres da vida privada para o mundo do trabalho com consequentes possibilidades de afirmação, de auto manutenção, de experiência intelectual, espiritual, mas, na essência, elas estão pagando muito caro, porque nós fizemos essa migração para o mundo público sem negociar a vida privada. Nós não negociamos a vida privada e não negociamos porque partimos do lugar da transgressão. Nós estávamos transgredindo uma lei não escrita. É como se pedíssemos quase desculpas de estar chegando no mundo do trabalho, querendo igualdade nesses espaços.

Então fazemos de conta que nós não tínhamos vida privada, porque sempre foram as mulheres que cuidaram da vida privada, que cuidaram de crianças, de idosos, de pessoas doentes, da casa. Mas quando chegava no mundo do trabalho era como se você dissesse: “deixa eu entrar, me trate aqui como uma igual, porque você não vai nem perceber que eu não tenho esses problemas”. E em casa dizia aos maridos e companheiros: “me deixa sair que você nem vai perceber que nada mudou aqui”.

Portanto, ninguém colocou no centro da negociação o imenso tempo, o imenso esforço e o imenso valor social que tem a vida privada. E se não se coloca isso, nunca vai se conseguir construir um mundo do trabalho particular, de reconhecer a sua importância para homens e mulheres. Porque não se trata de reconhecer só para as mulheres, tem que reconhecer também para os homens, dar a eles o direito à vida privada, o que muda completamente, se isso acontecer, o perfil do mundo do trabalho. Eu costumo dizer que no dia que se reconhecer a validade, a legitimidade da vida privada, isso tem um impacto como o do fim da escravidão.

MMPB - Mulheres já são 30% das chefes de família no Brasil. Isto é um avanço ou um retrocesso?
Rosiska
- Acho que isso é um imenso problema para as mulheres e que não se deve festejar de maneira alguma. Entendo porque se festeja, pois significa dizer que a mulher se sustenta, mas não é normal que a mulher se sustente e com sua saída para o mercado de trabalho ter que sustentar a sua família. Isso não é prova de avanço nenhum. Eu acho que hoje a figura do provedor, do homem provedor, saiu do ar. Eu costumo dizer brincando, mas não é uma brincadeira, você dizer a palavra “provedor” perto de um menino de 15 anos ele vai pensar no provedor de Internet, no mundo virtual. Ele nunca vai pensar num homem que sustenta sua família, porque existem muitos poucos homens hoje que sustentam sozinhos a sua família. Que as mulheres estejam em igualdade de condições com os homens participando do sustento de suas famílias, acho normal e uma razão de comemorar. Que elas estejam sozinhas carregando esta carga de manutenção da família, acho uma aberração.

MMPB - Em recente relatório, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que as tensões entre trabalho e família geraram um alto custo para mais de 100 milhões de mulheres inseridas no mercado de trabalho na América Latina e no Caribe. Você discute essa questão em seu livro “Reengenharia do Tempo”. O que pensa sobre essa realidade feminina?
Rosiska
- Eu penso que as mulheres progrediram imensamente, em matéria de liberdades, liberdade estudantil, liberdade com seu corpo, acho que hoje nosso corpo nos pertence muito mais que jamais nos pertencia antes. Penso que a questão do uso do tempo é central. Nós precisamos deslocar esta questão do âmbito privado, porque não houve uma discussão entre um homem e uma mulher dentro de casa. Isto é uma questão pública, é preciso reconhecer o valor social e econômico da vida privada e, a partir daí, se reestrutura o mercado de trabalho de maneira que isso seja levado em consideração e se desafogue as mulheres. Tirar das mulheres o peso imenso que representa para elas, hoje, carregar a família sozinha e se multiplicar por mil, acrescentando a ela a vida privada. Ou se mexe nisso ou as mulheres vão começar a se cansar das conquistas que fizeram. Elas estão extremamente cansadas e não voltarão para trás, mas precisam ir para frente. A luta feminista, hoje, por excelência, para mim, se situa em levar a sociedade a reconhecer o peso da vida privada, o peso e o valor da vida privada, de todos os pontos de vista, de repensar a sociedade, o papel das mulheres na sociedade à luz dessa avaliação do peso da vida privada. Aí, sim, talvez nós possamos falar em igualdade e liberdade.

MMPB - Você também foi presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Como avalia a organização e demandas das mulheres no país hoje?
Rosiska
- Eu aprecio muito a gestão da ministra Nilcéa Freire. A Lei Maria da Penha foi um avanço formidável, uma grande conquista, e eu espero que continuemos tendo conquistas desse porte, porque a violência é outro problema gravíssimo, outra luta feminista histórica. Já na minha gestão nós lutávamos contra isso, e eu creio que aí se constitui, realmente, uma grande vitória.

MMPB - O que é o Centro de Liderança da Mulher (Celim)?
Rosiska
- O Centro de Liderança da Mulher tem uma vocação nacional, formou lideranças em todos os estados do Brasil. Formamos gerações aqui na cidade do Rio de Janeiro e em todas as regiões do Estado. Trabalhamos nos últimos dois anos em favelas cariocas, com mulheres de favela, formando-as como lideranças e fazemos paralelamente um trabalho cultural, um trabalho de debate no plano da cultura. “Reengenharia do Tempo” foi um livro que nasceu do Celim, da minha experiência do Celim. Com o campo que eu fiz de pesquisa dentro do Celim, através das lideranças com quem eu lidava, pude formular essa teoria da reengenharia do tempo, e é essa teoria que eu tenho procurado debater com o conjunto da sociedade brasileira.

* Rosiska é advogada, professora universitária, jornalista e escritora, Rosiska Darcy de Oliveira nasceu no Rio de Janeiro. Trabalhou como jornalista na Revista “Visão”, TV “Globo” e “Jornal do Brasil”. Acusada de denunciar torturas contra presos políticos, foi exilada pela Ditadura e morou 15 anos na Suíça, onde fez doutorado e lecionou na Universidade de Genebra. Participou ativamente do movimento internacional de mulheres. De volta ao Brasil, presidiu a coalizão de mulheres brasileiras na Eco 92 e, em 1995, assumiu a presidência do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Foi representante do Brasil na Comissão Interamericana de Mulheres da OEA, co-chefiou a delegação brasileira na Conferência Mundial sobre a Mulher em Beijing e fundou, no Rio de Janeiro, o Centro de Liderança da Mulher. Foi membro do conselho consultivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento para as questões referentes a ”mulher e desenvolvimento”. Integra o “Painel Mundial sobre a Democracia” e o “Painel Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável“ da UNESCO. Atualmente é a Presidente Executiva do movimento “Rio Como Vamos” e vice-presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro. Escritora, seus dois primeiros livros, Le Féminin Ambigu e La Culture des Femmes, foram publicados na Europa. “Elogio da Diferença”, publicado no Brasil e nos Estados Unidos, e “Reengenharia do Tempo” dão continuidade a sua obra sobre o feminino. “A Dama e o Unicórnio”, “Outono de Ouro e Sangue” e “A Natureza do Escorpião”, exprimem sua vocação de cronista. Jornalista, colabora nos jornais “O Globo” e “O Estado de S. Paulo”.

Do site Mais Mulheres no Poder da Secretaria de Políticas para as Mulheres

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Tereza analisa reforma eleitoral


Tereza Vitale representa o PPS no Fórum Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos.

Por: Valéria de Oliveira

A reforma eleitoral aprovada pela Câmara dos Deputados nesta semana pode ser considerada um avanço para as mulheres, analisa Tereza Vitale, da Coordenação Nacional de Mulheres do PPS, mas em muitos pontos, como o percentual de tempo de TV a elas destinado e o montante de recursos do fundo partidário, houve retrocesso em relação ao projeto original, de autoria do deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN).

Confira detalhes da reforma eleitoral aprovada pela Câmara

Vitale, que representa o PPS no Fórum Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos, avaliou que houve ganhos e perdas no texto do substitutivo. Ela lamentou a fixação em apenas 5% da quantidade mínima de recursos do fundo partidário que têm de ser usados para criar e manter programas destinados a promover a participação das mulheres na política partidária. A versão original fixava em 10%. Um dos avanços foi a aprovação da mudança do termo "reserva de vagas" por "preenchimento de vagas" no tocante às cotas. "Da forma como estava (no projeto original), os registros de candidaturas (destinados às mulheres) eram facilmente burlados", ressalta.

Tempo de propaganda

Outra perda importante, analisa Vitale, foi a diminuição, na propaganda gratuita de rádio e TV, do tempo reservado para as mulheres integrantes de partidos para a promoção da participação feminina na vida política. A redação original determinava 20%; o substitutivo baixou o percentual pela metade.

"Um avanço a ser destacado é a aprovação de sanção aos partidos que não obedecerem as novas regras eleitorais", salienta Vitale. O partido que não preencher 30% do número de candidatos com mulheres será punido e terá que repassar mais 2,5% do fundo partidário para as mulheres a cada eleição em que for desrespeitado o preceito. "A sanção será aplicada progressivamente a cada período eleitoral", explica Tereza Vitale.

Reforma Política

Ela acrescenta que somente uma reforma política profunda poderá garantir mudanças na sub-representação parlamentar das mulheres brasileiras. "Enquanto ela não chega, vamos cumprir o que a nova lei determina, e avançar internamente no nosso PPS, garantindo que todos os estados cumpram bem suas novas tarefas eleitorais".

Tereza Vitale salienta que o Fórum Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos atuou ativamente nas negociações da reforma eleitoral. Como representante do PPS e ao lado dos assessoras da Liderança do partido na Casa, ela acompanhou as reuniões e sessões sobre o tema, defendendo maior participação das mulheres no processo eleitoral do país.

Resistência e tensão

Vitale enfatiza que "as conquistas das mulheres sempre vêm a conta-gotas, e que desta vez acreditava que os avanços viessem em maior escala". Ela diz que as discussões sobre a necessidade de ampliar a participação das mulheres se fazem cada vez mais presentes em todos os fóruns de discussão preocupados com as questões de gênero, "mas os parlamentares e os líderes lutaram bravamente para não partilhar com as mulheres espaços que podem ser exclusivamente seus".

Vários momentos das negociações para aprovar as reivindicações das mulheres, capitaneadas pela comissão tripartite e pela bancada feminina, foram tensos, com muitas discussões exaltadas. Vitale avalia que a reforma eleitoral aprovada na Câmara "representa um avanço, sem dúvida, e que pode ser considerada o início do processo de conquista na luta por mais espaço político para as mulheres brasileiras".


Que poder feminino?

Uma reflexão sobre a representação de mulheres no Legislativo
Patrícia Rangel

Em 2007, a eleição da primeira parlamentar completou 100 anos. Não é surpreendente que tenha sido obra da Finlândia, país de excepcional histórico de acolhimento da mulher na vida política. Infelizmente, na maior parte dos países, as mulheres tiveram de esperar muito para serem eleitas e a representação feminina não tem progredido satisfatoriamente.

Muitos elementos influenciam a performance de candidatas que concorrem a uma cadeira em assembleias legislativas. Contudo, cada vez mais se destacam a relação entre representação de mulheres e tipos de sistemas eleitorais e as novas interpretações sobre os vínculos entre as duas dimensões. Mas será que o sistema eleitoral é, por si só, uma variável suficiente para determinar o sucesso ou o fracasso das eleições de mulheres para cargos legislativos? Em que medida fatores culturais, socioeconômicos e outros fatores políticos também influenciam a presença feminina nos parlamentos?

O intuito do trabalho é analisar o impacto dos sistemas eleitorais na eleição de mulheres e apontar outros fatores que possam influenciar o que chamaremos de feminização das assembleias legislativas, explorando o modelo analítico proposto por Manon Tremblay em sua obra Women and Legislative Representation (2007). A contribuição do artigo se encontra em promover o debate sobre representação, gênero e política. Como afirma Cynthia Enloe (2000), introduzir e aprofundar a questão do gênero nos leva a explorar diferenças políticas enraizadas nas diferenças naturais. A institucionalização de disciplinas e trabalhos focados em gênero, a conformação de grupos de pesquisa, a revisão de conceitos e o aprendizado de teorias feministas fazem parte do esforço de lançar holofotes à existência e ação social das mulheres, empoderando esses atores políticos.

I – Mulheres e política institucional

Definindo poder político como a capacidade de tomar decisões e fazer valer escolhas no mundo público, é patente que as mulheres ainda não alcançaram uma posição de poder na sociedade. Tal fato não justifica, entretanto, nem respalda mitos como apatia política ou desinteresse pelas coisas públicas por parte das mulheres. Como bem explica Lúcia Avelar (2001), tende-se a considerar participação somente formas de ação ligadas ao mundo masculino, de classe média alta, da população branca. Por isso, diversos tipos de envolvimento das mulheres na política não são reconhecidos.

Argumenta Avelar (2001) que as dificuldades encontradas pelas mulheres em função de sua condição não são decorrentes de qualquer situação individual ou deficiências particulares: as razões para a baixa representação feminina são de natureza estrutural. A autora ressalta que, apesar de toda a militância feminista pela igualdade na organização política, os ganhos ainda são poucos, uma vez que a conquista da igualdade formal não é a mesma da igualdade real, e que a ampliação dos direitos de cidadania é um processo lento.

Cada vez mais a representação feminina tem sido considerada fator relevante para se analisar uma democracia, e é hoje amplamente aceita como critério para mensurar a cidadania e a igualdade de oportunidades. Por conta disso, governos e organizações internacionais têm se dedicado a propor e implementar soluções para o problema. Em 1995, a Conferência Mundial sobre a Mulher das Nações Unidas estabeleceu um mínimo de 30% como meta mundial de participação feminina em casas legislativas. Entretanto, dados da União Interparlamentar da ONU (IPU, da sigla em inglês) apontam que, 13 anos depois, essa meta foi alcançada em somente 20 Câmaras de Deputados no mundo.

Trabalhos sistemáticos de monitoramento como o realizado pela IPU (nível de representação alcançado nos parlamentos nacionais) e pelo International Institute for Democracy and Electoral Assistance – Idea (adoção de cotas nas casas legislativas) têm contribuído fortemente para apontar onde há avanços na área.
Segundo a IPU, em fevereiro de 2009, havia 18,4% de mulheres legisladoras no mundo, sendo 18,5% das Câmaras Baixas e 17,6% das Câmaras Altas (IPU, 2009).

II – Fatores que influenciam a representação política de mulheres

1) Representação feminina e sistemas eleitorais

Diversos autores apontam que um dos fatores que ajudam a compreender resultados distintos em países semelhantes é o tipo de sistema eleitoral. Suas características, apesar de não serem decisivas, influenciam as chances de elegilibidade das candidatas. Do ponto de vista da representação formal, podemos considerar os sistemas eleitorais como o principal mecanismo da escolha dos representantes. É importante ressaltar que a opção por um sistema eleitoral não é neutra, pois reflete a concepção de representação política de um país e determina a forma através da qual a vontade do povo será traduzida no Legislativo.

Podemos considerar três grandes famílias de sistemas eleitorais: sistemas majoritários; sistemas de representação proporcional (RP); e sistemas mistos. Cada um deles está baseado em uma concepção de representação política que representa a configuração da assembleia legislativa no momento. Um estudo realizado com base no índice da Freedom House em 2005 indicou que a proporção de mulheres em câmaras baixas ou câmara única de 88 países democráticos se distribuía da seguinte forma: 10,8% em sistemas majoritários, 17,7% em sistemas mistos e 21,1% em sistemas de representação proporcional. Ou seja, assembleias legislativas formadas com base em um sistema proporcional acolhem quase o dobro de mulheres que o sistema majoritário acolhe.

Sistemas majoritários são desvantajosos para a eleição de mulheres na medida em que cada partido político designa apenas um candidato por distrito eleitoral, ao contrário do sistema de RP, no qual cada candidato indica diversos nomes em cada distrito. O sistema de representação proporcional se fundamenta na noção de “microcosmo” contida na definição de representação simbólica. Ele busca reproduzir a configuração da sociedade convertendo votos de cada partido em assentos no parlamento, estimulando os partidos políticos a produzir uma lista balanceada que tenha apelo em todos os setores da comunidade. Consequência direta disso é o favorecimento da eleição de mulheres.

Apesar de a representação proporcional ser geralmente atrelada ao sucesso feminino em eleições, nem sempre esse sistema se mostra amigável às mulheres. A análise dos estudos da IPU (2007) sobre a participação feminina nos permite perceber que, apesar de a maioria dos Estados que possuem mais de 25% de mulheres parlamentares adotarem a RP, muitos dos países que estão nas piores colocações também o fazem. Não devemos, portanto ignorar a influência dos sistemas eleitorais sobre as chances de eleição das mulheres, mas devemos ter em mente que eles interagem com um amplo arranjo de outros fatores, criando uma dinâmica que influencia a proporção de mulheres parlamentares. Outras variáveis relevantes podem ser agrupadas em três categorias: culturais, socioeconômicos e políticas.

2) Fatores culturais

Por cultura entendemos os padrões, valores, crenças e atitudes que permeiam uma sociedade e suas instituições, contribuindo para definir como um povo fala, interage, delibera, enfim, qual é seu estilo de vida. A maior parte das comunidades está enraizada em valores patriarcalistas, sobretudo as sociedades periféricas do capitalismo tardio, nas quais há forte legitimação de papéis bastante distintos para homens e mulheres. Esse fato implica numa forte resistência das instituições partidárias e do eleitorado à participação político-institucional de mulheres, associadas à esfera privada, às tarefas domésticas e ao cuidado.

São sociedades transpassadas pela divisão sexual do trabalho, que perpetua valores machistas no estabelecimento e desenvolvimento de papéis sociais. Para Nancy Fraser, a capacidade destrutiva dos valores androcêntricos estaria em seu exercício cotidiano e nos processos de socialização mais básicos de um sistema de crenças que situa as mulheres em posições de inferioridade. Na maioria dos casos, a primeira barreira à participação política feminina já aparece em casa.

Daí a necessidades de se estabelecer normas que condicionem práticas sociais mais igualitárias, de modo a alterar a cultura política e a mentalidade da população. Os próprios partidos apresentam resistência à incorporação das mulheres na arena política, dada a visão geral conservadora sobre o papel social da mulher. Aliando-se os valores patriarcais às variáveis que determinam uma baixa demanda por candidatos, resulta-se em uma realidade na qual os partidos não tomam como prioridade a presença feminina em cargos políticos. Faz-se necessário então desconstruir padrões institucionalizados de valores culturais que privilegiam as masculinidades e desconsideram o que está no escopo do feminino, impedindo o estabelecimento de uma verdadeira justiça, principalmente no âmbito material.

3) Fatores políticos

Quando falamos em fatores políticos, estamos nos referindo àqueles elementos que moldam a demanda por candidatos. Há quem insista que o incremento da participação feminina depende mais dos partidos políticos do que do sistema eleitoral ou dos eleitores. Para Araújo & Alves (2007), os partidos de esquerda teriam uma tendência maior a estimular a participação feminina e a eleger mais mulheres.

Em relação ao âmbito organizacional, procedimentos internos institucionalizados, regras claras e vida partidária ativa seriam pontos que incentivam a participação e o recrutamento eleitoral de mulheres. Sobre o sistema partidário, pode-se considerar uma tendência dos sistemas pluripartidários à estabilidade institucional e, consequentemente, a proporções mais elevadas de mulheres eleitas. Uma assembleia onde atuam vários partidos políticos, portanto, possuiria mais chances de eleger mulheres que uma casa bipartidária.

As cotas para o sexo minoritário nas listas eleitorais, por sua vez, apresentam-se como fator de impacto imediato no processo de feminização das casas legislativas. Elas funcionam como mecanismos de discriminação positiva para combater o problema estrutural da baixa participação feminina e corrigir a injustiça do monopólio da representação masculina e dos interesses desse grupo social (AVELAR, 2001). A adoção de cotas é um artifício positivo nas estratégias eleitorais, sobretudo quando a política se torna personalizada e extremamente volátil. Esse artifício foi recomendado pela primeira vez em 1986 pela conferência ministerial europeia sobre a igualdade, e hoje é uma estratégia cada vez mais utilizada para reduzir a sub-representação feminina. Os países que possuem maior número de mulheres em seus parlamentos são os que desenvolvem leis de igualdade entre os sexos.

4) Fatores Socioeconômicos

Trabalhamos aqui com fatores socioeconômicos enquanto elementos que moldam as condições materiais que favorecem ou impedem que mulheres se dediquem à política como candidatas. Uma vez que os partidos políticos recrutam poucas, é natural que as mulheres sejam sub-representadas nas assembleias legislativas. Alguns acadêmicos argumentam que os partidos não convocam mulheres por não encará-las como candidatos em potencial. Segundo eles, se as condições socioeconômicas das mulheres fossem mais elevadas, haveria um crescimento análogo na presença destas em partidos e nas casas legislativas.

Relacionadas à falta de condições materiais suficientes estão as responsabilidades domésticas, variável que pode ser apontada como um dos principais fatores que impedem as mulheres de se dedicarem à política. Aproximadamente 30% das legisladoras não têm encargos familiares. Parlamentares mulheres também possuem mais que o dobro de chances do que os homens de serem solteiras.

Segundo Avelar (2001), a sub-representação política da mulher deriva da lógica de marginalização social. Na sociedade capitalista, possui maior valor social o indivíduo que tem maior status ocupacional. As mulheres acabam por desenvolver menor status social, o que diminui seu valor social e político. A ideologia do desempenho, baseada na tríade qualificação, posição e salário também gera implicações diretas nas relações de gênero, de modo a perpetuar a desigualdade entre os sexos e o mito de inferioridade da mulher.

III – Conclusões

A sub-representação das mulheres é um sintoma do déficit democrático presente em diversos regimes eletivos. Falamos em déficit democrático pois, considerando o princípio da representação descritiva, uma assembleia legislativa só é considerada representativa se sua composição for uma reprodução reduzida da sociedade. Assim, podemos dizer que existe um déficit de representação em Estados nos quais não existe paridade entre os sexos nas casas legislativas.

Vimos, neste breve compêndio de ideias, que as regras eleitorais influenciam diretamente as chances das candidaturas femininas. Observamos também que a forma como a sociedade se organiza materialmente e a cultura têm peso no processo de feminização das assembleias legislativas. Acredita-se que a política seja uma arena predominantemente masculina, pensamento que se reflete no baixo índice de participação das mulheres nesse espaço e reproduz uma situação de marginalização. As desigualdades entre os sexos são perpetuadas por mecanismos sutis de dominação, que naturalizam e legitimam a diferença e funcionam como o habitus de Bourdieu: disposições duráveis incorporadas desde a mais tenra infância que pré-moldam oportunidades e proibições de acordo com condições objetivas.

Nesse sentido, Clara Araújo e Celi Scalon (2005) indicam que, a despeito do desenvolvimento de uma cultura mais igualitária, as práticas ainda são exercidas de forma bastante tradicional e certas desigualdades não são percebidas como injustas. Com base num survey que analisou percepções sobre papeis sociais, as autoras apontaram que grande parcela da população ainda pensa que existem atividades distintas para homens e mulheres.

Retomando as perguntas de partida deste trabalho, podemos fazer algumas afirmações:

1)Os sistemas eleitorais exercem grande influência sobre o processo de feminização das Câmaras Legislativas.

2)Cada tipo de sistema eleitoral possui características que, em determinados momentos, favorece ou prejudica a eleição de mulheres, mas isso não pode ser tomado como uma regra universal e imutável. Os sistemas de representação proporcional são tomados como os mais favoráveis à feminização das assembleias legislativas, mas em alguns casos, não impediram mulheres de ter uma performance insatisfatória em eleições. O sistema majoritário elegeu mais legisladoras do que o sistema proporcional ou o sistema misto nos casos da Escócia e do País de Gales. É necessário afastar generalizações e adotar uma perspectiva microanalítica capaz de capturar detalhes importantes. Outros autores sugerem a realização da análise com base em contracategorias.

3)É impossível analisar os impactos do sistema legislativo sobre o número de mulheres legisladoras eleitas sem considerar as cotas e a atuação dos partidos políticos.

4)Além dos partidos e das cotas, há outros fatores que interagem com estes e com o sistema eleitoral e acabam por influenciar a eleição de mulheres nas assembleias legislativas. Estes são aspectos culturais, socioeconômicos e políticos. O impacto desses fatores é maior durante o processo de seleção de candidatos pelos partidos.

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